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Em “dakar” no Altiplano em busca do maior deserto de sal do mundo

Abril 8, 2017

Só tu e eu, deserto. O silêncio. O céu azul. Os hexágonos de sal. Uma linha no horizonte. Cheguei a Uyuni depois de uma longa noite de viagem num autocarro-cama. Um hábito frequente na América do Sul para quem quer viajar rápido sem perder o sol dos dias e poupar dinheiro. Depois de uma noite de sono cheguei a Uyuni. Este é o ponto de partida.

Saímos em grupo de seis pessoas, num jeep 4X4, para três dias longe da civilização, através de uma natureza rara. Éramos sete no total, o número mágico, todos sabem! E a viagem prometia. O enredo desmonta-se em sete capítulos.

Uma ilha do deserto de Uyuni


1.Visita ao cemitério dos comboios
A linha de comboio que liga a Bolivia e o Chile percorre os desertos da Bolívia para levar minerais vindos da regiões mais altas como Potosí. Carvão, lítio, prata e tantos outros chegam ao Chile, embarcam nas águas do Pacífico, para assim chegarem a todo o mundo. Os comboios amontoam-se nesta velha sucata a céu aberto sendo hoje um ponto turístico de passagem para o deserto de sal de Uyuni. Velhas locomotivas de origem inglesa e francesa e vários vagões numa linha quase sem fim. É certo e sabido, que onde há minerais há mão estrangeira na exploração. A Bolívia não fugiu à regra!

Cemitério dos comboios

2. Deserto de sal de Uyuni

O salar de Uyuni é tão extenso que lhe perdi a vista. Eram doze mil quilómetros quadrados de sal. A história registou um mar imenso que foi substituído por lagos, e por último, a natureza transformou em deserto salino. O solo de sal na região média do salar pode atingir cerca de 45 metros de profundidade. E abaixo disso? Água. Que durante vários meses tenta ascender à superfície. Neste mês de Novembro, os hexágonos de sal são apenas sinais de um deserto árido em tempo de seca. O solo branco e duro. Tão duro que uma pequena queda pode fazer feridas. Daqui a poucos dias, os hexágonos de uma natureza rígida desaparecem, a água preenche todo o deserto e a imagem será um intenso reflexo azul celeste infinito. Em qualquer altura do ano, o deserto de sal é magnificente, belo, infinito e fotogénico. Vários turistas saem de Uyuni para visitar o maior salar do mundo. E, é tão extenso, que os turistas se afogam na imensidão. Viajei pelo deserto sem ter a sensação de visitar um dos clichés mais fascinantes do mundo.

O infinito deserto de Uyuni

A viagem no maior deserto do mundo começou com mais  de quatrocentos quilómetros percorridos. Ao final do dia, depois de uma tempestade de areia o pôr-do-sol encerrou o dia num silêncio absoluto.

O inesquecível pôr-de-sol no deserto de Uyuni

Com o cair da noite, a actividade nocturna é simples. Um jantar quente no hotel de sal na pequena povoação de Colcha K, uma caminhada para observar as estrelas e um descanso profundo sem ruídos.

3. Estação dos comboios de Julaca

Ao segundo dia de viagem, a primeira paragem matinal foi uma velha estação de comboios que serviu como posto de abastecimento de água aos comboios movidos a carvão. Ali encontra-se os primeiros vagões que chegaram a terras bolivianas. Seria no ano de 1889 e a inércia era um estado de quietude dos bolivianos. O vento corria velozmente mas sem sinais de comboios em movimento. O silêncio era endurecedor, o campo de futebol estava vazio. Peter, o guia de viagem anunciava a sua passagem, contudo o comboio não chegou. Talvez este comboio seria apenas um vulto boliviano. As linhas estavam frias e ferrogentas.

Cemitério dos comboios

4. Vale das rochas e San Agustin

Os quilómetros passaram velozmente, os olhos pestanejaram todo o trajeto. O céu azul caía sobre as montanhas rochosas. Uma longa estrada onde por vezes avistam-se llamas e alguns pastores. As casas são pequenos alfinetes neste universo. Os bolivianos percorrem quilómetros nestes vales, carregando às costas a colheita da terra. Uma pequena paragem aqui, outra ali. Sair do carro, esticar as pernas, subir às rochas, fotografar a nostalgia. Chegámos a San Agustin. O que há para visitar? Nada. Uma pequena povoação sem sinais de vida. Todos se encontravam na lavoura, dizia Peter. A quinoa era o cereal rei e nem o sol forte afasta as pessoas do trabalho.

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A caminho de San Agustin

5. Lagoa negra e colorada

Mais quilómetros. Um dia longo em viagem. Entre desertos e lagoas. Uma expedição digna de um Dakar. Horizontes longínquos. Vulcões com cores multicolores. Montanhas arenosas. Lagoa negra. Lagoas brancas de sal. Lagoa rosada. Flamingos de cor coral comendo crustáceos e algas nas bordas das lagoas. Llamas a beberem tragos de água. Uma estrada sem fim.

Há dias nostálgicos em viagem.  Aqueles dias, em que uma frase, um momento, um sentimento eleva a mente para um estado frio e pensativo. Olhei o deserto e vi-me no passado. Desconheci-me no centro do pensamento. A percepção nítida de que tinha perdido a esperança no mundo e em toda a humanidade. Um mundo de paz sólida e duradoura, na fraternidade, na liberdade e na luta pela salvação e preservação da natureza. Deixei de acreditar no globo. No meu dicionário deixou de existir a palavra utopia. Os anos de juventude aniquilaram-me o sonho de um mundo melhor. Senti-me uma criança a entrar no mundo dos adultos e ali fui recebida numa sala fria e sacrástica: “Benvinda à realidade!”

Este ano em viagem assisti às coisas mais bárbaras dos últimos tempos da história. Os atentados em Nice, o Bretix como sinal de aumento da xenofobia em Inglaterra, a vitória de Trump nos Estados Unidos, a negação do acordo de paz na Colombia, a queda da máscara do governo de Dilma no Brasil, sinais graves de que um genocídio esteja acontecer no Sudão do Sul onde os conflitos duram há anos, a ausência de esperança do término do conflito na Síria que tem gerado milhões de refugiados. Assiti na América Central e Sul ao mesmo problemas de quase todos os estados do mundo: a corrupção política.

No deserto, diante de uma natureza transformadora, a melancolia fez-me questionar donde estaria aquela pequena criança que todos dizem existir dentro de nós. Onde está a sonhadora utópica? O meu mundo tornou-se numa esfera pequena. A minha esperança é dedicada à minha esfera.  A minha aldeia, a minha cidade, as minhas comunidades. Nas pequenas coisas do dia-a-dia. Nas pequenas mudanças. Nos sentimentos que nos unem. Nas relações que criamos. Na sabedoria pela espiritualidade. No respeito pela natureza. No valor da natureza acima de tudo!

Lagoa colorada

6. Geysers Sol de la Mañana e o deserto de Salvador Dalí

A viagem continuou aparte de todas as reflexões. E os momentos eram surreais. A alvorada começou às cinco da manhã. Depois de um café quente assisti ao nascer do sol pelos trilhos torneados nas montanhas. Seguimos os geysers Sol da la Mañana para ver de perto os fumos quentes e explosivos. Peter pedia-nos cautela. Perante as lamas borbulhantes e o cheiro intenso a enxofre, havia turistas inquietos que tiveram finais infelizes. Só o som era assustador e bastou para impor respeito.  A mais de cinco mil metros de altitude seguimos a viagem até ao Deserto de Salvador Dalí. Não se sabe exactamente quando terá passado pelo deserto, contudo sabe-se que esta visão das rochas emergindo das areias seria tão surreal que terá sido uma inspiração para as suas pinturas. Diante da paisagem é inevitável não me surpreender com a originalidade e a criatividade da natureza.

Geysers no Parque Eduardo Evaroa

7. Águas termais de Polques e Lagoa Azul

O roteiro não terminou sem um mergulho nas águas quentes diante daquele cenário magnificente. A contemplação. A paz externa e interna. Uma hora de desfrute. E de seguida, o último cenário bélico. A lagoa azul turquesa. Uma mistura de tóxicos altamente fascinante que poderia aniquilar qualquer pessoa.

Águas termais de Polque no Parque Eduardo Evaroa

No final das longas horas de carro ao lado de Peter, o motorista, guia e por fim, amigo foi umas dos momentos mágicos da Bolívia.  Depois da viagem ou durante a viagem, podia morrer, que morreria feliz. Um enredo a sete capítulos não poderia deixar de ser um reflexo de momentos perfeitos.

parque eduardo evaroa bolivia

Lagoa azul a caminho da fronteira com o Chile

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1 Comentário

  • Reply Sucre, com um susto pelo caminho – Lookingaround Abril 22, 2017 at 17:13

    […] Sul da Bolívia regressava a Uyuni para seguir em viagem para Sucre. De novo, a opção seria o autocarro nocturno. A estação de camionagem era pequena, suja e sendo noite era também um lugar para poucas […]

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