Sábado à tarde no Rio de Janeiro convida a um passeio cultural pelos bairros de Santa Teresa e Lapa. Toda a gente sabe que sábado é dia da cultura. E o Rio de Janeiro tem uma oferta cultural vasta! Com o apoio público, o acesso à cultura está acessível a todas as pessoas. E não é preciso procurar muito. Bastou-me uma deambulação perdida para ver uma exposição fotográfica, ouvir música na rua e tomar um chope no bairro, assistir a uma peça de teatro e terminar na boémia Lapa com um concerto pop-brasileiro no Circo Voador. Há melhor programa de sábado no Rio de Janeiro?
Sankofa: Memória da Escravidão na África – Conjunto Cultural Caixa
Saí na estação do metro Carioca, dobrei a esquina que o sol queimava a pele e nesse instante, a porta alta e larga do Conjunto Cultural Caixa convidou-me a entrar. Lá dentro, uma exposição fotográfica num cartaz amarelo, Sankofa: Memória da Escravidão na África. A viagem tem destas surpresas e o viajante tem de deixar-se ir na corrente dos sentidos. E assim, começava a minha tarde de sábado entre o passado africano, a colonização portuguesa e as raízes brasileiras que perduram em terras africanas. O fotógrafo Cesar Fraga percorreu as cidades africanas protagonistas do tráfico de escravos para o Brasil, numa expedição por nove países – Cabo Verde, Guiné Bissau, Senegal, Gana, Togo, Benin, Nigéria, Angola e Moçambique. Acompanhado do historiador Maurício Barros de Castro, trouxe ao Brasil a memória afro-brasileira: castelos, fortalezas, pelourinhos, rituais, danças, festas. Depois de uma viagem fotográfica e da visualização de alguns vídeos dos momentos mais dramáticos, eles convidavam aos brasileiros a enviar aos seus irmãos africanos, uma mensagem enrolada dentro de uma pequena garrafa de vidro. Terminei a viagem angustiada. Apesar de ser portuguesa, a história negra dos descobrimentos e da escravatura nos continentes africanos e americano estavam numa memória tão longínqua! Aliás, a imagem heróica e bela dos descobrimentos contada nas escolas portuguesas sobrepõe-se à verdadeira história, terrífica e sangrenta, dos portugueses no mar. É vergonhoso, como ainda nos dias de hoje a história não seja contada de outra forma. No Rio de Janeiro ou em Luanda, o olhar sobre os portugueses é estranho porque o passado é-lhes presente!
Da Escadaria de Selarón até ao Parque das Ruínas – Bairro Santa Teresa
A tarde de sábado avançava e depois de caminhar a Avenida República do Paraguai chegava ao Aqueduto da Carioca, mais conhecido pelos os Arcos da Lapa, para ver o bondinho passar. Contornei a praça para chegar à rua Teotónio Regadas e iniciar a subidinha pela excêntrica, colorida e animada escadaria Selarón. A obra artística do chileno Jorge Selarón que data dos anos 90 tornou-se um dos ícones da cidade e, até o lugar de eleição de alguns cantores para a gravação de videoclips. A escadaria é um verdadeiro quadro de azulejos coloridos com postais vindos de todo o mundo, inclusivé de Portugal. Este lugar que marcou a vida e a morte de Jorge Selarón é um ponto de encontro do mundo, assim como da criançada do bairro da Lapa. Em tarde de sábado, os garotos cariocas escorregavam nos azulejos para festejar o verão.
A subida é íngreme e o calor convidava a parar. Fotografia aqui, outra ali. Bato papo ali, outro aqui. A passo e passo, acompanhando a música, subi até ao bar do Serginho. Uma esplanada montada na esquina, com um chope fresquinho e uma sandes de queijo. Uma mercearia diria, mas o Serginho misturava tudo. E porque não? Tudo pode acontecer nas ruas de Santa Teresa.
Uma pausa rápida e a música levou-me a caminhar um pouco mais adiante. Chegava ao Parque das Ruínas e ali o samba colocava os pés a dançar. O Parque das Ruínas é um edifício velho e antigo, que se deixa engolir pela hera verdejante. E assim como ela, o visitante deixa-se levar até ao topo para apreciar umas das mais bonitas paisagens sobre o Rio de Janeiro. O Parque não está a morrer, muito pelo contrário, com um centro cultural e uma feira de artesanato alternativa a acontecer todos os sábados, este lugar está a renascer. A música velha de Jorge Ben era cantada pela voz de uma jovem brasileira. A cultura dava de novo vida ao Parque das Ruínas.
As longas tardes de verão permitiam ao tempo dar mais tempo para uma incursão mais profusa pelo bairro Santa Teresa. O festival de cerveja artesanal acontecia em quase todos os botecos. Um chope aqui, outro ali. Um bate papo com o Carlos, artista de rua. Uma conversa afiada com o velho que cantava à porta de casa em tronco nu, enquanto dava uma pausa ao cigarro. Uma pausa observatória sobre a mesa de xadrez, onde Pedro e o seu pai se entretinham numa competitiva jogada. O bondinho cheio passava no trilho curvilíneo. A tarde avançava e os botecos do Rio estavam lotados. Eles de short e havaianas, sentados na beira da porta. Elas de vestido curto e lábios retocados em pose de sedução. À porta do bar do Mineiro. Um daqueles lugares tradicionais míticos, com obrigatória paragem para assistir à vida brasileira, beber um chope, comer uma feijoada ou um pastel de feijão. A tarde de sábado acabava em Santa Teresa mas a noite começava na Lapa.
Peça de teatro na Sede das Cias
Ao descer à Lapa, as escadas de Selarón tornavam-se mais enigmáticas, numa atmosfera de desconfiança. A noite mostrava um outro lado da Escadaria de Selarón. Nos últimos degraus a Sede das Cias convidou-me a entrar. Uma escola de actores e uma sala pequena de teatro. O Rio deixava-me fascinada com a sua entrega à cultura. Vários eram os espaços com acesso gratuito à cultura. Depois do Conjunto Cultural Caixa, as peças de teatro na Sede das Cias aconteciam por donativo. Ali, entrava noutra viagem. O teatro levou-me pelos enredos da Amazónia, ao mais profundo da humanidade. Num monólogo surpreendente a atriz encarnou diversas personagens do passado e do presente. As raízes da verdade de uma aldeã velha e sábia da Amazónia. A loucura stressada de uma mulher engolida pelo capitalismo de São Paulo. Uma crítica brilhante de uma geração perdida de valores e destruidora da mãe-natureza. A luz apagou-se e o público aplaudiu de pé eloquentemente. Naquela pequena sala, o teatro mostrou que ainda pode ser um veículo de mudança positiva no mundo. Estava rendida à criatividade, à energia cativante e à força motriz que o povo brasileiro traduz na cultura.
Concerto no Circo Voador
A noite chegou. E a Lapa vestiu-se de gala, retocou os lábios de vermelho e o samba entrou no palco. Depois de um peixinho grelhado com arroz de feijão no Bar do Gomes corria para o Circo Voador para encontrar o Marcel e a Mel. A Céu era a estrela da noite no palco do Circo Voador. Junto aos Arcos da Lapa, este espaço cultural aberto desde 1982, é um dos mais irreverente e tradicionais da música brasileira. Um espaço composto por uma tenda gigante em forma de nave, desenhado com estruturas metálicas criando um segundo piso sobre o palco, dando a sensação de proximidade com o cantor. O espaço é completamente aberto e as ondas sonoras podem percorrer todo o bairro da Lapa. Desde a sua fundação passou por períodos difíceis e hoje “é o lugar onde as diferenças dançam juntas sob as palmeiras imperiais!”.
O Circo Voador é uma das casas mais amadas e respeitadas do Brasil, “a nave” continua a ser o palco das mais famosas lendas musicais do Brasil. Mas, as noites mais aclamadas são ‘Eu amo Baile Funk’. A música brasileira tem alma e uma intensidade apaixonante que percorre todo o mundo.
Sábado é dia da cultura. Após a meia noite, o feitiço da Gata Borralheira não se desfez e a noite continuou adentro com música. Há melhor programa de sábado no Rio de Janeiro?
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